segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Deserto



Caminhava sobre grãos de areia tão quentes quanto o fogo que um dia a protegera do frio de maio. Lembrava-se dos dias de chuva ininterrupta, e de como tudo isso a fazia se sentir viva... E sentia a torturante falta que a água nos lábios e no corpo fazia. Sentia como se tivesse comido um saco de farinha de trigo inteiro – por sua garganta não passava uma gota de água há horas. Sua pele antes pálida, quase que fantasmagórica, estava rubra e sua textura era semelhante à de um réptil. O ardor a invadia por toda parte.
O sol brilhava como jamais havia brilhado, e o dia parecia nunca ter fim. Apenas três dias se passaram, e ela já não via como sobreviver a um quarto. Ao longe, algum animal emitia sons agonizantes, quase como um lamento – quase como uma suplica. Com medo de seguir em busca de vida ou algo que a ajudasse a manter a sua, deitou o corpo nas dunas fofas que cobriam toda a paisagem, cobriam tudo que estava ao alcance de seus olhos. A luminosidade a cegava, não importava o quão fechados estivessem os olhos, a luz penetrava; ela estava dentro de um forno, literalmente.
Tentou juntar todas as forças que tinha para levantar, porém a areia a puxava de volta, sendo uma força muito maior. A noite chegava, porém não havia alegria nisso... O ar antes abafado, antes todo de mormaço, agora era frio, era geada. A pele queimada ardia ao toque do vento, e por dentro o frio possuía tal efeito, que fazia com que sentisse a dor de ser apunhalada mil vezes a cada minuto que passava. A sua travessia era de dois extremos, assim como o amor: Quente, queima tanto que nem chega a doer... Mas quando esfria, bem, é então que sentimos as queimaduras. E assim como o amor, destrói.
A noite seguiu tão lentamente quanto o dia. E como o dia foi pungente. Era calma, sucinta, porém cruel... E logo se foi dando o dia novamente. Porém, antes do sol surgir por completo, ainda enquanto o céu era rosa, ela ouviu novamente o som... Aquele som que a atormentara no início da noite. Ele chegava mais perto, e mais perto... Até que ela pôde finalmente ver o autor do som: Um urubu enorme se aproximava dela, e o medo a invadiu... Tentou correr, porém, pobre coitada, nem ao menos podia gritar. Não conseguiu mover um músculo...

O pássaro enorme então pousou ao seu lado; olhou profundamente em seus olhos verdes e bicou-os ferozmente, um de cada vez. Depois lhe arrancou as orelhas, os lábios e o nariz... Ela sentia como se cada parte de seu corpo pulsasse forte – como se todo o seu corpo fosse um coração. A dor era tanta, que nem ao menos conseguia sentir. E logo seus sentidos foram esvaindo do corpo, e sua mente se foi antes de sua alma deixar a carne. E quanto à última... Bem, outros urubus junto ao primeiro tomaram posse.
O urubu deve lhes parecer uma criatura cruel, porém é o contrário. Sem os olhos, ela não poderia mais ver o amor que tanto a feriu, nem os lugares por onde esse amor se seguiu. Sem as orelhas, ela não poderia mais ouvi-lo dizer que o amor já não mais valia, e que deveria a ele esquecer. Sem os lábios, não poderia mais implorá-lo seu amor, nem lhe dizer algo humilhante ao ver de todos, e principalmente ao seu próprio. Sem o nariz, não poderia mais sentir o cheiro dele, misturado a seu perfume, nem o perfume da flor que ele lhe dera. E seu corpo todo pulsava, porque ela ainda o amava, e em cada parte do corpo, guardava uma parte do amor.

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